quarta-feira

A geografia do Acordo Ortográfico

Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
Antonio Carlos Olivieri*Cristina Von**

A partir de 1º. de janeiro de 2009, deve-se começar a pôr em prática as regras estabelecidas pelo o decreto de no. 6583, publicado em 29 de setembro de 2008, que promulgou no Brasil o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O Acordo foi assinado ainda em 1990 por representantes dos governos dos sete países que, naquela data, já tinham o Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.
Estes países integram, juntamente com o Timor Leste (que se tornou independente em 2002), a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, fundada em 1996, com os objetivos de promover maior união e cooperação entre os países-membros e reforçar sua presença no cenário internacional, bem como materializar projetos de promoção e difusão do idioma comum: o português. Foi a expansão marítima portuguesa que difundiu o idioma na África, na Ásia e na América do Sul, a partir do final do século 15.


Duas ortografias


É sobre esse pano de fundo político-diplomático que se deve entender a realização do Acordo que, unificando a ortografia do português, visa a lhe dar maior importância no mundo, já que esse idioma é falado por mais de 200 milhões de pessoas espalhadas em quatro continentes. Desde 1911, em função de uma reforma ortográfica ocorrida em Portugal, sem comum acordo com o Brasil, existiam duas ortografias oficiais, a portuguesa e a brasileira, ambas corretas, para a mesma língua.
Não há dúvida de que, em particular no mercado editorial (aí incluídos os portais da internet), a entrada em vigor do Acordo vai ocasionar custos e uma grande quantidade de trabalho para adequar os textos às novas normas ortográficas. O Acordo, porém, segundo dados da Academia de Ciências de Lisboa, modifica a grafia de somente 2% das palavras do idioma, cerca de duas mil num universo de 110 mil.
Não estão contabilizadas nessa relação as alterações quanto à utilização do hífen e as resultantes da supressão do trema que, no entender dos responsáveis pelo texto do Acordo, são poucas e de fácil apreensão. Vale lembrar que o esforço de unificação ortográfica teve como critério a fonética, isto é, a grafia das palavras foi alterada no sentido de aproximá-la da forma falada, com a abolição de consoantes mudas, por exemplo.
Plurilinguismo
O português é o idioma oficial e predominante no Brasil e em Portugal, mas é bom lembrar que nos dois países há falantes nativos de outras línguas. No Brasil, estão em uso atualmente cerca de 180 línguas indígenas, segundo a Funai - Fundação Nacional do Índio. Sem contar as dos índios isolados, uma vez que não estão em contato com a sociedade brasileira e suas línguas ainda não são conhecidas Em Portugal, cerca de 15 mil pessoas falam o mirandês, na região da Terra de Miranda, no norte da península Ibérica.
Porém, se essa é a situação do português nas duas nações mais proeminentes (sob o ponto de vista político-econômico) da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, qual o papel da língua de Camões e Machado de Assis nos outros seis países-membros?
Em Angola cerca de 70% da população falam a língua oficial, o português, mas grande parte também usa uma das 40 línguas locais, das quais as principais são o umbundu, o quicongo e o quimbundu, de origem africana.
Crioulos
Em Cabo Verde o português é utilizado na documentação oficial, nas rádios e televisões e nas escolas. Nas situações quotidianas é utilizado o cabo-verdiano, um crioulo, que é a designação dada às línguas mistas, nascidas do contato de um idioma europeu com outros nativos, que se tornaram línguas maternas de certas comunidades socioculturais.
Na Guiné-Bissau uma pequena parcela da população usa o português como língua materna. O crioulo é usado por metade da população. A base do vocabulário vem do português, mas a gramática é tipicamente africana. Entre as línguas nacionais (cerca de 25) estão o balanta, o mandinga, o fula, o manjaca, o papel e o mancanha. Devido ao fato de a Guiné-Bissau estar situada entre o Senegal e a República da Guiné, 10% da população falam francês.
Em Moçambique, o português é falado por 40% da população, usado em casa por 9% e reconhecido como língua materna por 6,5%. A maioria dos falantes do português reside nas áreas urbanas do país. Há cerca de 40 línguas nacionais de origem banto, entre elas o emakhuwa, o xichangana e o elomwe.
Em São Tomé e Príncipe, fala-se oficialmente o português, mas informalmente usam-se crioulos como o são-tomense (ou forro), o principense (ou moncó) e o angolar (ngola). Outra língua muito falada nas ilhas é o crioulo cabo-verdiano.
Já em Timor Leste, existem 24 línguas nacionais, mas a mais falada delas é o tétum, bastante influenciado pelo português. Atualmente é o português que está sendo valorizado no país como língua oficial, devido ao tétum carecer de uma forma padrão de escrita.
Índia e China
O português também é falado em pequenas regiões na Índia (Damão, Diu e em Goa) e na China (em Macau). Na Índia, na união do território de Damão e Diu não é fácil encontrar alguém que fale português ou, como se diz, "a língua dos velhos". O gujarate, uma língua indo-iraniana, é o idioma usado pela maioria.
Em Diu, somente 200 moradores usam o português e em Damão ele é falado por cerca de 3.000 pessoas. Em Goa existem cerca de 30 mil falantes da língua portuguesa. Nas ruas, fala-se mais o concani, o marathi, o gujarate, o kannada, o urdu e o hindi.
Em Macau, próxima a Hong Kong, na China, o português permanece como língua oficial com estatuto idêntico ao chinês, mas só uma pequena população o usa. O dialeto, conhecido como a "língua doce de Macau", é um crioulo baseada no português e é usado por 8 mil residentes macaenses. Macau foi a última colônia portuguesa a se tornar independente e foi devolvida para a China no dia 20 de dezembro de 1999.

Como uma vírgula acabou com um namoro no dia dos namorados

Conta-se que, em Palmeirinha do Vale, cidade de dezessete mil viventes, que se situa perto de Santana do Arrebol do Oeste, havia uma professora de português, extremamente rígida, de nome Austeresa de Jesus. Ela era de tal modo rigorosa para com os alunos que estes temiam encontrá-la mesmo no dia-a-dia, na praça central, na mercearia, na farmácia.
Dizem que ela interpelava seus pequenos educandos, estivessem onde estivessem, sobre as mais variadas regras gramaticais. Ai de quem não soubesse a resposta: ela sacava seu caderninho rosa, anotava o nome da vítima, a pergunta que lhe fizera, a resposta dada --ou a falta dela-- e o quanto valia relativamente à nota escolar.
Dependendo do grau de dificuldade da pergunta, ela diminuía 0,1, 0,2 ou 0,5 da nota que o aluno tirasse na prova seguinte. Era um suplício para as pobres crianças palmeirinhenses.
Quando Austeresa era jovem, enamorou-se de um rapaz bem-apessoado, também professor de português, de nome Telos Alonso. Ele, porém, não tinha a mesma capacidade intelectiva dela nem a mesma habilidade em sala de aula nem a mesma rigidez. Era um moleirão a bem dizer, que nem gostava muito de estudos aprofundados. As maldizentes até comentavam que ele não era homem para uma mulher como Austezinha, como a chamavam carinhosamente.
O namoro entre eles durou exatamente onze meses e vinte e sete dias. O estopim para o término do relacionamento foi um cartão que ele lhe mandara no dia dos namorados em que escrevera "Para a minha namorada Austereza de Jesus". Ao ler esses dizeres, quase teve uma síncope; chegou a perder o juízo. Pegou de uma caneta e imediatamente escreveu-lhe uma pequena carta, em que dizia:
"Telos Alonso, é de conhecimento geral em Palmeirinha que tolero os maiores sofrimentos, que suporto as maiores provações. É, no entanto, também comentário corrente que há duas situações que jamais enfrentarei: traição e erro gramatical. E você, meu ex-amado, acabou de cometer ambos: você, professor de português, sabe muito bem que os nomes próprios femininos formados pela posposição do sufixo -esa ao radical se escrevem com S, não com Z.
Como meu namorado há quase um ano ainda erra meu nome, trocando letras? Não me importo tanto pelo erro de meu nome, mas importo-me --e muito-- com o trocar letras. Poderia ter-me chamado de Austerise; não me atenazaria tanto, pois teria usado as letras adequadas: nomes femininos terminados em -ise se escrevem com S, como Denise e Anelise; mas ignorar que se escrevem com -ês e -esa nomes de pessoas, como Inês, Teresa e o meu, logicamente, Austeresa, adjetivos pátrios, como português e portuguesa, e títulos sociais ou nobiliárquicos, como camponês e camponesa, marquês e marquesa e ainda princesa, a maneira como me tratava, é demais para mim.
Fico agora a pensar: cada vez que me chamava de princesa, sua mente produzia princeza? Não. É demais para mim. Não suporto tal provação. E a traição? Como a descobri? Você mesmo se delatou: '...minha namorada Austereza'. Assim escreveu você; sem vírgula. Assim escolheu me mostrar que tem outra namorada. Não teve coragem de me contar pessoalmente, contou-me por subterfúgio, e eu entendi.
Ao não colocar vírgula entre meu nome e o substantivo que ele especifica, mostrou-me que não sou a única. Se o fosse, ter-me-ia escrito '...minha namorada, Austeresa', com vírgula. Muito perspicaz foi você, dar-me a conhecer uma situação por meios gramaticais: substantivo próprio que especifica substantivo comum, sem vírgula entre eles, restringe, ou seja, há mais de um: 'Professora Austeresa', sem vírgula, pois não sou a única professora, há muitas; mas substantivo próprio que especifica substantivo comum, com vírgula entre eles, explica, ou seja, só há um: '...minha namorada, Austeresa', com vírgula; eu seria a única, mas não o sou; sei-o agora.
Aliás, nem me importo mais com o namoro. Mesmo não havendo a traição, não quero mais tê-lo como namorado, pois dois erros de português em uma única frase cometidos por um 'professor de português' é demais para mim. Adeus.
"Nota do autor: Isto nem Austeresa atinou: o substantivo telo, na cidade de Beira, em Moçambique, é usado como sinônimo de jumento; e alonso, em uso informal, significa parvo, tolo, pateta.